As vozes que causaram o nascimento da psicanálise são aquelas que ecoavam, no final do século dezenove, pelo hospital de La Salpetriêre em Paris. Se pudermos usar nossa imaginação saberemos escutar os sons dos corpos de centenas de mulheres confinadas em um hospital psiquiátrico que antes disso havia sido uma prisão feminina. Gritos, gemidos, sussurros, gargalhadas, silêncios. Silêncios múltiplos…
Impactado pela intensa experiência vivida na capital francesa, Freud retorna para Viena e passa a dedicar seus dias aos estudos sobre a histeria No intercâmbio criativo realizado com Breuer, conhece os efeitos da voz de uma mulher em especial: Bertha Pappenheim. Dela, que era uma histérica espetacular e manifestava uma palheta inacreditável e colorida de sintomas, conversões, afetos e dissociações cognitivas. Apaixonada, caíra de amores pelo médico que lhe cuidava. Grávida de significantes, Bertha – mais conhecida por seu nome fictício atribuído por Breuer, Anna O. – foi a primeira a nomear o método psicanalítico que, com ela, e por que não, dela, nascia: a cura pela fala, carinhosamente chamada de limpeza da chaminé.
Depois de seu tratamento médico com Breuer, Bertha desliga-se definitivamente da psicanálise, transformando-se em uma relevante assistente social e ativista pelos direitos das mulheres. Cria uma instituição de assistência as mulheres desamparadas e funda a Liga das Mulheres Judias, a primeira organização judaica a defender os direitos civis e religiosos das mulheres judias, a qual presidiu por vinte anos. Bertha também era escritora. Publicou livros, uma peça de teatro e traduziu obras para o alemão, entre elas o Vindication of the Rights of Woman, de Marry Wollstonecraft, publicada pela primeira vez em 1792.
Sra. Emmy von N., Miss Lucy, Katharina, Srta. Elisabeth von R… Mulheres múltiplas. Conhecemos os casos clínicos apresentados por Freud e Breuer em seus Estudos sobre a Histeria… Por meio dos seus sofrimentos, de suas angústias, de suas paixões, de seus amores, de seus desejos, de seus ardores insatisfeitos expressos em sintomas na busca de alguma satisfação possível, Freud pode criar a psicanálise. As suas vozes, femininas, escutadas por Freud, e por elas mesmas, ecoam até os dias de hoje nas letras vivas do saber psicanalítico em transformação.
Nos textos onde se dedica a pensar especialmente sobre as questões da sexualidade feminina, Freud cita – en passant – algumas psicanalistas que contribuíram ativamente para o pensamento psicanalítico que, com elas, emergia. Karen Korney, por exemplo, criticava a visão sexista sobre a sexualidade feminina, desde o princípio. Foram muitas as teóricas ativas que contribuíram para que Freud repensasse os seus próprios limites relativos a tal questão.
Lou Andreas Salomé, por outro lado, sustentou a superioridade masculina no campo da razão, ainda que, com seus escritos poéticos, tenha sido capaz de evocar outros sentidos – que não o fálico – para as potencialidades criativas do erotismo. Em Reflexões sobre o problema do amor , Lou evoca:
“Permanecer eternamente estranhos um ao outro, permanecendo eternamente próximos: essa é a lei de todo amor, ao caráter que lhe é imposto e que nunca se extingue. Pois não é apenas no caso extremo que mencionamos, nem também no desprezo ou no amor não partilhado, mas em todas as situações em que seres humanos se amam, que um se limita a tocar o outro de leve, abandonando-o, depois, a si mesmo. É sempre uma estrela inacessível aquela que amamos, e todo amor é sempre, em essência íntima, uma tragédia – mas que só nessa qualidade pode produzir seus efeitos imensos e fecundos. Não é possível mergulharmos tão profundamente em nós, não é possível extrairmos o que quer que seja das profundezas da vida, nessa região onde todas as forças repousam ainda enlaçadas, e todos os contrários ainda estão indiferenciados, sem sentirmos em nós a felicidade e as tormentas em sua conexão misteriosa”. (p.46-47)
No Brasil, Lélia Gonzalez fez uso da psicanálise de uma forma extremamente singular. Lélia estava ciente de que a singularidade emerge do coletivo, do modo como cada vida humana é afetada, em sua diferença radical, pelas inúmeras relações que lhe constituem ao longo da história e de cada momento.
Com extrema originalidade, apontou para o racismo e o sexismo tão enraizados na cultura brasileira. Criando novas palavras, e utilizando expressões populares da língua no contexto acadêmico, bagunçou a hegemonia dos significantes dominantes, lançando novas realidades possíveis, muito além do discurso. Nas palavras de Lélia:
“É interessante constatar como, através da figura da “mãe-preta”, a verdade surge da equivocação (Lacan, 1979). Exatamente essa figura para a qual se dá uma colher de chá é quem vai dar a rasteira na raça dominante. É através dela que o “obscuro objeto do desejo” (o filme do Buñuel), em português, acaba se transformando na “negra vontade de comer carne” na boca da moçada branca que fala português. O que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como querem os brancos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como quem alguns negros muito apressados em seu julgamento. Ela, simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra. Se assim não é, a gente pergunta: que é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe prá dormir, que acorda de noite prá cuidar, que ensina a falar, que conta história e por aí afora? É a mãe, não é? Pois então. Ela é a mãe nesse barato doido da cultura brasileira. Enquanto mucama, é a mulher; então “bá”, é a mãe. A branca, a chamada legítima esposa, é justamente a outra que, por impossível que pareça, só serve prá parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a “mãe preta” é a mãe”. (p.235)
Que as vozes femininas da psicanálise sejam reconhecidas, transmitidas e multiplicadas. É o meu desejo. Desejo… Desejo… Desejo!
Referências
GONZALEZ, Lelia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revistas Ciências Sociais Hoje, 1984.
SALOMÉ, Lou. Reflexões sobre o problema do amor e o erotismo. São Paulo: Landy, 2005.