A psicanálise propõe pensar a constituição da sexualidade, em cada sujeito, a partir do inconsciente; já aqueles que se dedicam às questões de gênero compreendem a sexualidade humana como uma construção histórica e cultural. Questiono: É possível hoje pensar o inconsciente em sua relação com a história e com a cultura? Se acompanhamos o pensamento de Sigmund Freud e Jacques Lacan, verificamos que sim.
Cito Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921): “ A oposição entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer plena de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinada mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o ser humano singular e estuda os caminhos pelos quais busca alcançar a satisfação de suas moções pulsionais. Mas apenas raramente, sob determinadas condições de exceção, pode o indivíduo prescindir de suas relações com o outro. Em sua vida mental, o outro conta, com total regularidade, como modelo, como objeto, como auxiliar e como inimigo, e portanto, desde o princípio a psicologia individual é simultaneamente psicologia social nesse sentido mais amplo, mas inteiramente legítimo. A relação do individuo com seus pais e irmãos, com seus objetos de amor, com o mestre e com o médico, vale dizer, todos os vínculos que foram até agora tomados preferencialmente pela psicanálise, podem reivindicar serem considerados fenômenos sociais”.
Sabemos, por suas palavras, que Lacan é um freudiano. Jamais o psicanalista francês abandonou o legado do criador da psicanálise; com sua originalidade, Lacan propôs novas articulações entre a psicanálise e outras esferas do saber, elaborou novos modos de abordar os conceitos psicanalíticos, criou alguns significantes novos, mas nunca, até onde sei, se contrapôs ao ensino freudiano. Podemos afirmar que as ideias de Freud continuam sendo as bases do edifício psicanalítico. E, investigando sua obra, verificamos que não há, de fato, uma oposição entre o que é da ordem da subjetividade e o contexto histórico e cultural no qual esta se produz. O que também não quer dizer que a subjetividade seja apenas um produto do contexto no qual se insere. Apesar de não se completarem, subjetividade e cultura não existem, uma sem a outra, e a linguagem é o elemento que as constitui. O que a psicanálise demonstra é que o modo como a linguagem afeta cada vida é único, apesar de todas consequências.
Ao longo da história da civilização, sabemos que as mulheres sofreram processos de opressão – como por exemplo, a sua massiva exclusão da esfera pública, das atividades econômicas, intelectuais e políticas – o que ocorreu, como provam as historiadoras, em diferentes culturas e épocas, e que só veio a se transformar significativamente a partir da revolução sexual ocorrida há aproximadamente 60 anos. Ainda assim, essa verdade histórica compartilhada não determina um destino comum a todas elas. Cada mulher é uma mulher, como cada homem é um homem, em sua singularidade. Homens e mulheres são significantes, é o que nos diz Lacan. E enquanto significantes, não podem ser completamente apreendidos. O significante escapa, equivoca.
Nas fórmulas quânticas da sexuação Lacan constrói uma forma de pensar a diferença sexual por meio das modalidades de gozo. Ele usa o significante homem para falar do gozo todo fálico, e o significante mulher para falar do gozo não todo fálico. Os diferentes modos de gozar da diferença sexual são correlativos às distintas posições subjetivas frente à castração. Entretanto, uma posição subjetiva não se constitui sem que um corpo sexuado tenha sido banhado pela linguagem; e a linguagem paga o preço de ser histórica e culturalmente produzida e veiculada, ainda que ela seja singularmente apropriada e recriada por cada sujeito.
Em O Seminário 19…ou pior Lacan conta que foi procurado por Simone de Beauvoir, antes dela publicar O segundo sexo. Em suas palavras: “Ela me telefonou para me dizer que precisava de meus conselhos para lhe dar esclarecimentos sobre o que deveria ser a contribuição psicanalítica para o seu livro. Como lhe assinalei que seriam necessários uns bons cinco ou seis meses para que eu elucidasse a questão – isso é o mínimo, pois estou falando há vinte anos, e não é por acaso – ela me observou que era inconcebível que um livro já em processo de execução esperasse tanto tempo, e as leis da produção literária eram tais que lhe parecia fora de cogitação ter mais de três ou quatro conversas comigo. Ao que declinei dessa honra”. A negativa de Lacan ao convite de madame Beauvoir não impediu que a mesma escrevesse o capítulo O ponto de vista psicanalítico, na primeira parte de seu livro (nomeada de Destino) onde a autora, apesar de apresentar uma série de mal-entendidos sobre a teoria psicanalítica, introduz algumas reflexões críticas bastante interessantes e potencialmente produtivas.
Em sua obra prima, Simone de Beauvoir questiona-se como e por que, ao longo da história do pensamento, a mulher passou a ser tomada como o Outro – alteridade absoluta – e como o objeto, ao passo que o homem ocupou o lugar do Um e do Sujeito. Ao contrário de tomar tais fatos discursivos como realidades universais, a autora aponta justamente para o aspecto político, ou seja, para as forças de poder presentes na produção de qualquer saber. Se os discursos são criados, por não serem inerentes, esses podem ser transformados.
Por hora, cito Simone: “Dizer que a mulher era o Outro equivale a dizer que não existia entre os sexos uma relação de reciprocidade: Terra, Mãe, Deusa, não era ela para o homem um semelhante: era além do reino humano que seu domínio se afirmava: estava, portanto, fora desse reino”.
Sustento a posição de que a psicanálise possui os recursos necessários para se relacionar de forma construtiva (ainda que incompleta) com os mais diferentes saberes, sem que para isso tenha que abrir mão de suas características, de suas qualidades e, principalmente, de sua ética.