Inicialmente, gostaria de enfatizar uma citação de Sigmund Freud, presente no texto “A pulsão e suas vicissitudes.”, publicado em 1915, pois penso que as suas consequências para o saber psicanalítico possuem mais importância do que muitos consideram.
“O avanço do conhecimento não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições.” (FREUD, 1974[1915], p. 137)
A pulsão – exigência de trabalho feita à mente em consequência de sua ligação com o corpo – possui características e sofre vicissitudes. Como características Freud introduz a pressão (drang)– que é constante -; a finalidade (ziel) – que é a satisfação, satisfação que é, por sua vez, parcial-; o objeto (objekt) – que é o que há de mais variável na pulsão-; e fonte – que é uma zona erógena do corpo. Como vicissitudes da pulsão sexual são apresentadas : a reversão ao seu oposto, o retorno em direção ao próprio eu, a repressão e a sublimação.
A reversão de uma pulsão em seu oposto possui dois processos distintos: “uma mudança da atividade para a passividade e uma reversão de seu conteúdo”. (FREUD, 1915, p. 147) Como exemplo do primeiro processo citado temos os pares de opostos: sadismo-masoquismo e escopofilia-exibicionismo. Neles, a reversão altera a finalidade da pulsão, onde a finalidade ativa é substituída pela passiva. Já a reversão de conteúdo manifesta-se no exemplo isolado da transformação do amor em ódio.
Sobre a vida pulsional, Freud constrói uma metáfora que me parece muito interessante:
“Podemos dividir a vida de cada pulsão numa série de ondas sucessivas isoladas, cada uma delas homogênea durante o período de tempo que possa vir a durar, qualquer que seja ele, e cuja relação de umas com as outras é comparável à erupção de lava. Podemos então talvez figurar a primeira erupção original da pulsão como se processando de forma inalterada, sem experimentar qualquer desenvolvimento. A onda seguinte seria modificada desde o início – sendo transformada, por exemplo, de ativa em passiva – e seria, então, com essa nova característica, acrescentada à onda anterior e assim por diante.” (FREUD, 1974[1915], p. 152)
O termo ambivalência cunhado por Bleuer em 1910/1911, diz respeito ao fato de que uma moção pulsional pode ser observada ao lado do seu oposto, como é no caso do amor e do ódio. É com frequência que encontramos amor e ódio dirigidos a um mesmo objeto, o que faz com que este seja “o exemplo mais importante de ambivalência de sentimento”. Ainda, segundo Freud, o amor admite três opostos. Amar-odiar; amar-ser amado; e finalmente, amar/odiar – indiferença. Desse modo, seguindo a lógica freudiana, o que se distingue do amor, em sua estrutura articulada à pulsão, não é o ódio, mas sim, a indiferença.
Em 1915, Freud propõe que a organização psíquica se dá sob a regência de três polaridades, as antíteses: sujeito-objeto, prazer-desprazer, ativo-passivo. No começo da vida, o bebê ama apenas a si mesmo – o que é chamado de narcisismo – para só depois passar a relacionar-se com os objetos que, se forem fontes de prazer serão ‘introjetados’ – termo de Ferenczi (1909) – e amados, e se forem fontes de desprazer, serão ‘expelidos’ e odiados.
No ódio, o sujeito isola uma parte do seu eu, projetando-a no mundo externo e sentindo-a como hostil. Depois da fase de indiferença em relação ao exterior, o mundo externo e seus objetos passam a ser percebidos como estranhos e por isso são odiados. Em seguida, os objetos passam a ser percebidos como causas de prazer ou desprazer, e passam a ser amados ou odiados. Na relação com os objetos, a existência do ódio é anterior a do amor.
“Resta-nos agora reunir o que sabemos da gênese do amor e do ódio” escreve Freud. O amor tem sua origem no narcisismo e então passa a ser amor pelos objetos que são fontes de prazer. Torna-se vinculado a pulsão sexual. A incorporação ou devoramento – fases preliminares do amor que surgem como finalidades sexuais provisórias – aproximam o amor da abolição da existência separada do objeto, e portanto, comportam a ambivalência.
“Na fase mais elevada da organização sádico-anal pré-genital, a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia de dominar, para a qual o dano ou o aniquilamento do objeto é indiferente.” (FREUD, 1974[1915], p. 160) Nessa fase, o amor quase não se distingue do ódio em sua relação com o objeto. Como dito anteriormente, nas relações objetais, o ódio é mais antigo do que o amor, pois provém “do repúdio primordial do eu narcisista ao mundo externo com seu extravasamento de estímulos” (FREUD, 1974[1915], p. 161) Freud indica que a história das origens do amor permite uma melhor compreensão acera de sua ambivalência.
Não nos é estranha a ideia apontada por Freud de que, quando uma relação de amor é rompida o ódio surge em seu lugar. Nesse contexto, o ódio, “que tem seus motivos”, é reforçado por uma regressão do amor à fase sádica, adquirindo um caráter erótico, o que assegura a continuidade da relação amorosa. Odiar um objeto é, de certo modo, uma forma de continuar amando-o.
É curiosa a importância que o criador da psicanálise confere à ambivalência amor e ódio no texto paradigmático de 1915, “A pulsão e seus suas vicissitudes.” Ele faz, ao longo de uma generosa fatia de seu texto, justamente o que sugere ser esclarecedor para o melhor entendimento da ambivalência de sentimentos: retoma a gênese do amor e do ódio na constituição psíquica, elucidando-nos acerca de suas especificidades e correlações.
Lacan, no seminário 11, ensina que a pulsão, conceito fundamental da psicanálise, não é o impulso da física. Freud tinha como mestres em fisiologia aqueles que vinculavam a ciência fisiológica com os conceitos fundamentais da física moderna, e por tal razão faz uso de constructos que são oriundos de tal campo… mas ele faz com isso outra coisa. A pulsão passa a ser uma ficção fundamental da psicanálise.
É a introdução do real que se opõe ao princípio do prazer. Há, como descoberto por Freud, um mais além do princípio do prazer em jogo na pulsão. “O real é o choque”. (LACAN, 2008 [1964], p. 165) O choque que eletriza o fato de que não há nenhum objeto da necessidade que satisfaça a pulsão. A boca não se abre pelo alimento, e sim pelo gozo oral. A insatisfação pulsional é irremediável e o objeto amado não traz a completude sonhada; logo, o objeto amado é também odiado a partir da própria impossibilidade de satisfação plena que a relação com o objeto comporta. A pulsão contorna o objeto, mas não o apreende. Ele permanece, em parte, estranho ao sujeito. Tal é a face real do objeto que é capaz de causar o desejo sem oferecer-lhe alguma substância apaziguadora.
“A pulsão é precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente.”(LACAN, 2008 [1964], p. 173) e o objeto da pulsão é “este objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo.” (LACAN, 2008 [1964], p. 176)
Para Lacan, Freud é contraditório quando fala de uma vicissitude da pulsão, a da reversão em seu oposto, onde traz como exemplo a transformação do amor em ódio. Ele o é pois, ao escrever sobre a reversão da pulsão, aborda a noção de ambivalência, que quer dizer que amor e ódio convivem juntos, são duas faces de uma mesma moeda, e um não precisa ser revertido em seu oposto para que o outro possa aparecer em seu lugar. Como vimos, no amor, o ódio já estava lá.
Ainda, o amor, fundado no eu, não possui a mesma estrutura da pulsão, adverte o mestre francês. Há, por um lado, o campo pulsional e , por outro, o campo narcísico do amor. “…no nível do amor, há reciprocidade entre o amar e ser amado, e no outro campo, trata-se de pura atividade para durch seine eigene Triebe (pura atividade de suas pulsões), para o sujeito.” (LACAN, 2008[1964], p.195)
No seminário 20, Lacan retoma essa questão, de uma outra forma, quando aponta que no campo do gozo não há reciprocidade: a relação sexual não existe. Aborda o amor como o que surge na tentativa do sujeito de fazer suplência a tal inexistência. Uma produção simbólico-imaginária que visa suprir o oco do real. Tensão ao Um; o amor se dirige ao semblante de ser, demandando palavras de amor.
H.a.i.n.a.m.o.r.a.t.i.o.n, termo ambivalente que realiza a junção de haine (ódio) e énamoration (enamoração), também traduzido para o português como ‘amódio’, é introduzido por Lacan no seminário Encore. O que o termo expressa? “Que não se conhece amor sem ódio” (LACAN, 2010, p.184)
No seminário 22, o RSI, encontrei uma passagem sobre o tema… O amor se preocupa, um pouquinho, pelo bem estar do outro, mas até um certo limite. No entanto, “A partir desse limite, o amor se obstina – porque há o real em jogo- o amor se obstina em tudo o que é contrário ao bem estar do outro.” (LACAN, p. 105)
Se o verdadeiro se afirma como visando o Real, e se o verdadeiro amor desemboca no ódio, como ensina Lacan, pode-se pensar que o ódio – em um mais além de suas atribuições imaginárias – é ele próprio a face do amor que está mais próxima do real ?
Estaria o amor fadado a padecer em sua dimensão imaginária pelo vazio intransponível cavado a partir da relação do sujeito com o universo da linguagem?
O encontro com o objeto amoroso é faltoso e, saber-fazer aí com o desencontro do amor parece ser, inevitavelmente, um saber fazer aí com o encontro do ódio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. Artigos sobre Metapsicologia In: Obras Completas, E.S.B. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, Jacques. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola letra Freudiana, 2010.
LACAN, Jacques. Seminario 22 (1974-1975) Buenos aires: Mayeutica.